Retrato do Vampiro de Curitiba: as outras faces de Dalton Trevisan


Em uma das poucas conversas com a imprensa, em 1974, Dalton disse que gostaria de morrer aos 99 anos. Como se já tivesse escrito o final da história, autor faleceu em 2024, meses antes de completar o centenário, comemorado neste sábado (14). Amigos revelam ao g1 detalhes sobre vida do autor. Dalton Trevisan, que completaria 100 anos neste sábado (12).
Reprodução/RPC
Foi em um apartamento na Alameda Doutor Muricy, no Centro de Curitiba, que Dalton Trevisan passou os últimos quatro anos de vida.
As janelas grandes criam um ambiente muito iluminado, o que contrasta com a fama de “vampiro” que o autor acumulou ao longo da vida. As contradições entre a figura pública e a vida privada não surpreendem quem conviveu de perto com Dalton.
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Morto aos 99 anos, em dezembro de 2024, o escritor completaria 100 anos neste sábado (14). Amigos, conhecidos e o acervo de cartas e anotações deixado por Dalton mostram um curitibano bem-humorado, que gostava de ouvir Bezerra da Silva e Beatles.
O trabalho, no entanto, era levado muito a sério. Dalton estava sempre empenhado em atingir a perfeição em suas obras. Os dias do “vampiro” eram passados em meio a intermináveis revisões da própria obra, leituras de clássicos da literatura e muitos filmes – Dalton via de um a dois filmes por dia. Tudo isso era feito na companhia de um cachorro, que morava com o escritor.
Bem perto da Biblioteca Pública do Paraná, outro prédio abrigou parte importante da literatura do estado
O prédio onde Dalton morou no fim da vida poderia se tornar um panteão de escritores paranaenses. Além de Trevisan, também moraram ali – em épocas diferentes – Paulo Leminski, Alice Ruiz e Helena Kolody. Os “vizinhos” estavam separados pelo tempo, mas unidos pela literatura.
Da janela do apartamento em que morava, no 12º andar, bem perto da Biblioteca Pública do Paraná, Dalton via um quadro vivo da cidade que passou a vida povoando com personagens: a Praça Tiradentes, a Catedral de Curitiba e o mural de Poty Lazzarotto.
Foi nesse cenário que Dalton se isolou do mundo nos últimos anos da vida. O contato com o que acontecia fora do apartamento era intermediado pela representante editorial e amiga Fabiana Faversani.
“O Dalton foi o meu melhor amigo durante 20 anos. Eu aprendi muito com ele. A gente teve trocas incríveis também, porque, a partir de um certo período, ele ficou um pouco mais recluso por causa da idade. Eu acabava levando muita coisa do mundo: levando notícia de jornal, levando histórias… Acho que isso mudou meu jeito de ver as coisas. Agora sempre tem um pouquinho dessa lente do Dalton”, diz Faversani.
Do apartamento onde viveu os últimos anos de vida, Dalton Trevisan via o Centro de Curitiba, inspiração para grande parte de suas obras.
Júlio Barrios/RPC
A amizade entre os dois começou quando Fabiana trabalhava na Livraria do Chain, um dos poucos locais frequentados pelo discreto escritor.
Aramis Chain, proprietário da livraria, também era amigo de Dalton. Até hoje ele evita revelar detalhes sobre a vida pessoal do escritor, que sempre fugiu de entrevistas.
Soma-se ao mapa das explorações cotidianas de Dalton a Casa das Bolachas, onde os funcionários até já sabiam o pedido. O escritor, que retratava com fidelidade a vida noturna e o “submundo” de bares e becos de Curitiba, comia sempre um singelo bolo de laranja com café com leite.
A cerca de 400 metros da Casa das Bolachas fica o antigo casarão da Rua Ubaldino do Amaral, onde o escritor viveu por 65 anos.
O local virou parada obrigatória dos leitores do vampiro e ponto turístico não oficial da cidade. Por ali, passavam com olhos atentos os fãs, na esperança de ver Dalton zanzando pelas redondezas.
Havia um ar misterioso nas janelas da casa – voltadas para a calçada e sempre fechadas – que contribuía para a mística criada em torno da figura do escritor.
Casarão em que Dalton Trevisan morou a maior parte da vida.
José Fernando Ogura/SECOM
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O espião de almas
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A saída do casarão, no fim de 2021, não foi exatamente uma escolha. A casa já não comportava as necessidades do escritor – que, apesar de vampiro, envelheceu. Um assalto ao imóvel decretou de vez a mudança.
Em novo endereço, Dalton não parou de produzir. Metodicamente, revisitava os próprios textos em um exercício extremo de edição. Nas páginas dos livros, fazia anotações, rabiscos e adicionava novas palavras.
Metodicamente, Dalton Trevisan revisitava os próprios textos em um exercício extremo de edição.
Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP
Nos últimos anos, Dalton trabalhou na reedição do livro “O Vampiro de Curitiba”. Chegou a afirmar para Fabiana que a nova edição deveria comemorar os 60 anos de existência de Nelsinho, personagem que protagoniza a obra.
“Espero que não seja pelo meu centenário, porque isso não se comemora”, disse, na época, à editora.
Apesar do gracejo, o escritor sabia que uma data redonda como esta não passaria em branco.
Foi também do apartamento ensolarado que ajudou a planejar a exposição “Espião de almas”, em cartaz na Universidade de São Paulo (USP).
A mostra traz, além da coleção completa dos livros de Dalton, objetos que faziam parte do acervo pessoal do autor, como cadernos e diários, além de cartas trocadas com outros escritores, tradutores e editores.
Livros de Dalton Trevisan reeditados por ele mesmo.
Acervo pessoal Dalton Trevisan/ Fabiana Faversani/ IMS
São itens que buscam revelar novas camadas do autor, facetas ainda não exploradas pelos leitores.
“A gente teve que passar por todo um processo muito lento de escolhas, nem sempre fáceis – e logo após o processo de luto. O Dalton tinha falecido há menos de três meses quando a gente começou a montar a exposição. Infelizmente, ele não ficou para conferir o resultado final, mas foi como se ele estivesse junto durante o processo”, detalha Fabiana.
Dalton Trevisan anotou todas as vezes em que leu “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, em um exemplar bem antigo do livro.
Acervo pessoal Dalton Trevisan/ Fabiana Faversani/ IMS
O público descobre na exposição, por exemplo, que Dalton anotou em um exemplar de “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, todas as vezes em que leu o livro. Uma pequena pista das referências que compunham o universo literário do autor curitibano.
“A exposição foi uma maneira de manter o Dalton vivo, porque a obra dele ainda está super atuante e eu acho que ela vai chegar a mais pessoas”, afirma a amiga e agente literária.
A mostra traz também recortes de jornais com grifos feitos por ele. O material era usado como fonte de inspiração para os contos. Talvez esse fosse um dos segredos que traziam a autenticidade e sinceridade características das obras do artista.
Sua obra permanece vivíssima, ela continua comunicando questões fundamentais da vida humana, da vida brasileira, da vida social brasileira
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Literatura ‘polêmica’ revisitada como denúncia
Dalton Trevisan
Acervo pessoal Dalton Trevisan/ Fabiana Faversani/ IMS
Drogas, violência urbana e violência contra a mulher são temas frequentes dos contos de Dalton. É a literatura, concisa, como forma de denúncia.
Ao longo dos anos, os contos de Dalton passaram por muitas chaves de leitura diferentes. Foi de “experimental” a “provocador” a “polêmico”. Depois, por um tempo, a obra foi ignorada por supostamente representar uma visão de mundo “ultrapassada, machista”.
Em outro período, a opinião geral da crítica era de que Dalton só escrevia um tipo de história. Agora, tudo é revisitado sob o olhar da denúncia.
É a partir dessa perspectiva que o espetáculo “Daqui Ninguém Sai” foi construído. Nena Inoue, diretora da peça, conhece de perto a obra do escritor. Como atriz, ela fez parte da primeira adaptação da obra de Dalton para o teatro, em 1989, com “Mistérios de Curitiba”.
“Eu fiz muito Dalton Trevisan como atriz. E uma coisa que eu pude perceber, em todas as montagens, é o poder da palavra que esse autor tem. É uma coisa de uma popularidade impressionante. Essa capacidade que ele tem de falar de nós é o que faz com que o público se veja aqui, nos palcos”, afirma Nena.
Fabiano Vianna ilustra conto de Dalton Trevisan
Fabiano Vianna
Antes de morrer, Dalton também ajudou a pensar a peça, como era costume do escritor, que teve ao menos seis obras teatrais inspiradas pelos livros que escreveu.
O ator Rodrigo Ferrarini fez parte do elenco de “O pico na veia”, em 2006, e lembra que o escritor acompanhou um dos ensaios.
Dalton era uma plateia exigente. O mesmo preciosismo que fazia o escritor reeditar os próprios textos quando os relia, também o levava a revisitar o texto apresentado nos palcos.
“Ele não deixou de fazer revisões estando como espectador da peça. Ele pediu para eu trocar: ‘Ao invés de vestidinho, aqui você coloca corpete'”, conta Ferrarini.
Sugestão imediatamente acatada. O ator nem pensou em não segui-la.
“Você não podia mudar uma vírgula do que estava escrito. A gente tinha que ser muito rigoroso. Às vezes, você esquece uma palavra. A gente procura manter o rigor, mas às vezes, em uma peça que não tem um rigor tão grande, você pode ter um pouco de flexibilidade e dá para substituir uma palavra. Mas com o Dalton, não”, afirma.
A regra era conhecida entre os atores de peças com texto de Dalton: sem saber se o escritor estaria na plateia, ninguém ousava improvisar.
No caso de “O pico na veia”, Ferrarini se lembra de ver satisfação no rosto do escritor ao fim do ensaio. A aprovação estava dada.
Quando terminou a apresentação, ele fez um comentário, inaudível do palco, mas audível para quem estava do lado: ‘Se eu não fosse autor dessa peça eu levantaria e aplaudiria de pé’
A fama de vampiro
Trecho de uma rara entrevista concedida por Dalton Trevisan a Fernando Sabino em 1974.
Jornal do Brasil
A alcunha de “Vampiro de Curitiba” o perseguiu ao longo de toda a vida e além. A fama foi herdada do título de uma das obras mais conhecidas do escritor. O apelido “pegou”. Principalmente por conta do perfil reservado do autor e a aversão a aparições públicas.
Dalton era discreto na vida, guardava o estrondo para as histórias que publicava.
Para ele, o foco deveria estar na obra, não no escritor. Bem-humorado, falou sobre isso em uma carta enviada a Millôr Fernandes.
“Millôr, pode contar com os meus continhos sempre que você queira e a censura permita. A entrevista não pode ser. Além de não ter nada a dizer fora dos meus livros, não sou nada, não sei de nada, quem matou Maria não fui eu. Escrever meus continhos, sim. Falar, gravar, posar, nunca que não. A melhor entrevista do contador de histórias não é a própria história, pô? Grande abraço do seu velho”, escreveu.
Para os que o conheceram, não era antipatia o que movia o comportamento de Dalton, mas uma recusa do papel de “celebridade literária”.
No apartamento, Dalton deixava os prêmios Jabuti e Camões — os mais importantes para autores em língua portuguesa – em uma mesa na sala de casa.
Não se deixava seduzir pelas honrarias: no comunicado oficial do prêmio Camões, a organização divulgou que não havia conseguido contato com o escritor para avisá-lo da homenagem.
Um dia, Carlos Fernandes de Souza, dono da Casa das Bolachas, pediu um autógrafo do autor para uma amiga entusiasta. Dalton educadamente negou, mas dias depois apareceu com um pacote de livros como forma de compensação.
Um guerrilheiro cultural em Curitiba
A revista Joaquim rompeu com o provincianismo local e colocou Curitiba no debate literário nacional.
Biblioteca Pública do Paraná
Aos 14 anos, Dalton Trevisan escrevia crônicas para uma revista estudantil. Aos 16, publicou dois livros de poemas. Antes de completar 20 anos, se dividia entre as funções de repórter policial e crítico de cinema.
Aos 21, lançou a revista Joaquim, uma das primeiras experimentações literárias do jovem Dalton. A revista teve um papel fundamental ao projetar Curitiba – na época uma capital com pouco mais de 120 mil habitantes – na cena artística e literária do Brasil.
Entre 1946 e 1948, foram publicadas 21 edições. A revista contou com colaborações de artistas e escritores consagrados, como Vinicius de Moraes e Mário de Andrade.
Ao longo das décadas, Dalton consolidou parceria com outro gênio paranaense: o desenhista, ilustrador e muralista Poty Lazzarotto.
Amigos desde a adolescência, foi ele quem ilustrou a maior parte dos livros de Dalton.
Uma aliança curiosa: enquanto um escrevia uma Curitiba noturna, de becos e vielas, da denúncia e da violência; o outro ficou conhecido pelas ilustrações que mostram uma Curitiba ensolarada, de araucárias, migrantes e gralhas-azuis.
Em uma prova de que os opostos se atraem, Poty conseguiu traduzir visualmente o que se passava na cabeça do escritor. Foi um pacto poucas vezes visto no campo artístico, como aponta Chico Homem de Mello, designer, professor e pesquisador.
“Essa parceria artística entre alguém das artes visuais e um escritor, do campo do verbal… tem pouquíssimos casos na história da literatura brasileira de um vínculo tão estreito entre essas duas áreas, como na obra do Dalton e sua parceria com o Poty. Ele tinha um arco de interesse em outros ilustradores e trouxe esses ilustradores para a obra dele. Mas o Poty ocupa um lugar especial nessa história. O Poty lia por telepatia os interesses e as vontades do Dalton e, a meu ver, saíram ganhando as duas linguagens”, afirma.
Desenho de Dalton Trevisan, feito pelo amigo ilustrador Poty Lazzarotto
Poty Lazzarotto
Antes de chegar às grandes editoras do país, Dalton editava, imprimia e distribuía, por conta própria, exemplares de “caderninhos”, com pequenos contos.
“O Dalton fazia caderninhos, publicava e distribuía aos amigos – cada tiragem com duzentos exemplares. Isso deu ao Dalton uma popularidade antes de ele se tornar um escritor que publicava por uma editora oficial. Era quase um guerrilheiro cultural em Curitiba, mandando seus livros para o Brasil todo”, afirma Augusto Massi, poeta e professor de literatura brasileira na USP.
Incógnito, famoso por hostilizar a própria fama, consolidado na atmosfera de vampiro, Dalton escreveu o cotidiano. Dissecou amarguras, fraquezas, angústias e desejos de pessoas comuns. Conforme afirmam Massi e outros admiradores, o curitibano fez isso como poucos.
Mesmo com tantas facetas, a crítica literária se acomodou em ver um só lado do contista.
“A crítica fala que o Dalton se repetia. Agora, a gente categoricamente pode dizer o contrário: a crítica se repetiu quanto à leitura da obra do Dalton. Ele se renovou muitas vezes, e a crítica parou no tempo. Ele não. Ele era um cara mais aberto do que a imagem de um vampiro, de um sujeito que vive isolado em uma casa”, defende o professor.
Além do vampiro
Dalton Trevisan em cima de um coqueiro em um verão qualquer.
Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP
Dalton se casou em 1953 e ainda naquela década teve duas filhas. Gostava de Beatles e Bezerra da Silva.
Em 1948, comandou as reuniões do Clube de Cinema de Curitiba. Gostava de filmes de terror, comédias italianas, cinema francês e “A Pantera Cor-de-Rosa”. Na velhice, costumava ver um ou dois filmes por dia.
Foi um bom inquilino nos anos em que morou no apartamento da Doutor Muricy. Viveu cercado dos livros que amava e, por muito tempo, teve a companhia de um cachorrinho rebaixado com quem dividia o teto.
Cachorro era companhia de Dalton Trevisan.
Acervo pessoal Dalton Trevisan/ Fabiana Faversani/ IMS
A fama de recluso não significava sedentarismo. No apartamento, desocupado após a morte, ficaram para trás os pesinhos de academia usados por ele.
Quando ainda era estudante de Direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR), era um competitivo esportista. Em 1940, representou o centro acadêmico em competições de futebol. Porém, se consagrou no atletismo.
Um jornal da época noticiou a façanha em um texto que flerta com a brevidade típica de um conto daltoniano:
“O primeiro lugar nos saltos de extensão coube a Dalton que, em belo estilo, chegou aos seis metros”, dizia a notícia.
Em 1974, confiou a Fernando Sabino – em uma das raras entrevistas das quais aceitou participar – que gostaria de morrer aos 99 anos.
O rigor que Dalton aplicou ao escrever a obra parece ter se aplicado também à própria vida, até o fim. Dalton morreu no dia 9 de dezembro de 2024, aos 99 anos.
O vampiro não ronda mais as ruas do Centro, mas a obra que deixou e os personagens que ela eternizou seguem perambulando pelo imaginário da cidade. Toda rua ou beco de Curitiba tem um pouco de Dalton.
Curitiba sem pinheiro ou céu azul, pelo que vosmecê é – província, cárcere, lar –, esta Curitiba, e não a outra para inglês ver, com amor eu viajo, viajo, viajo.
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