Tratado de Itaipu: entenda o que está em jogo para o Brasil e Paraguai em renegociação sobre excedente de energia

Assinado há 50 anos, documento determina que Paraguai ceda energia que ‘sobra’ para o Brasil. Com novas discussões, que tramitam em sigilo, país vizinho pode querer comercializar a energia, conforme especialistas – o que pode causar impacto na tarifa brasileira. Anexo C determina que Paraguai ceda energia que ‘sobra’ para o Brasil
Brasil e Paraguai estão em fase de renegociação do Tratado de Itaipu, especificamente do Anexo C, que trata das bases financeiras e comerciais da hidrelétrica binacional.
A revisão, que teve início em 2023, ocorrerá 50 anos após a assinatura do acordo e pode ter impacto direto na conta de luz dos brasileiros. Isso porque um dos cenários possíveis nesta renegociação, conforme especialistas, é que o Paraguai deixe de ser obrigado a ceder ao Brasil, a preço de custo, a energia que não consome da usina de Itaipu – a chamada “energia excedente”.
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Pelo modelo atual, o Paraguai é obrigado a ceder ao Brasil a energia que não consome. Como utiliza apenas cerca de 5% do total que lhe cabe, o país cede 45% da energia gerada. O Brasil utiliza essa “sobra” para atender à demanda do mercado regulado.
“Após os 50 anos do tratado, a negociação está passando por altos e baixos. Por um lado, o Paraguai quer vender diretamente ao mercado livre para obter o maior valor possível. Já o Brasil busca manter a energia mais barata”, explica Tomaz Espósito, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
A Usina Hidrelétrica de Itaipu, localizada no Rio Paraná, na fronteira entre os dois países, começou a operar em 1984 e é a segunda maior do mundo. Com cerca de 14 mil megawatts de capacidade instalada, a usina forneceu 15,7% da energia consumida no Brasil em 2023, segundo o relatório de desempenho operacional de 2024.
O Tratado de Itaipu, assinado em 26 de abril de 1973 entre Brasil e Paraguai, estabeleceu as bases para a construção e operação da usina. O documento, composto por três anexos, discute o item C, que:
estabelece as bases financeiras e de prestação dos serviços de eletricidade, incluindo a fórmula para cálculo do custo da energia, tarifas e distribuição de receitas entre os dois países.
A data de assinatura do novo Anexo C foi definida, inicialmente, para dezembro de 2024. Posteriormente, especialistas especularam uma nova previsão em 30 de maio deste ano. No entanto, uma formalização não ocorreu e as tratativas seguem sem data definida.
O g1 procurou a assessoria da Itaipu Binacional, o diretor-geral brasileiro, Enio Verri, e o Ministério das Relações Exteriores para comentar o andamento das tratativas, mas todos não quiseram se manifestar.
Segundo o professor Espósito, as reuniões são sigilosas e realizadas a portas fechadas, sem participação do parlamento. Ele diz que, segundo especulações de especialistas, há expectativa de que um novo acordo seja fechado até agosto.
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O que pode mudar?
Com a renegociação do Anexo C, o Paraguai pode deixar de ser obrigado a vender ao Brasil, a preço de custo, a energia que não consome da usina de Itaipu.
Para o Brasil, isso pode significar mudanças nos preços e na forma como a energia da hidrelétrica é distribuída. Ao mesmo tempo, com o fim da dívida da usina em 2023, e a liberação de bilhões de dólares por ano, há também um cenário propício de redução – o desenrolar das duas situações depende de decisões políticas e comerciais.
A Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel) defende que ambos os países possam vender suas cotas de energia no mercado livre, onde preços e prazos são negociados diretamente com o consumidor.
Hoje, a energia de Itaipu abastece o chamado mercado cativo, onde estão os consumidores residenciais e pequenos negócios.
“É importante que essa energia limpa e barata chegue à indústria, que gera emprego e renda. A maior parte do mercado livre hoje está inacessível. Apenas 0,01% dos consumidores têm acesso”, diz Rodrigo Ferreira, presidente da Abraceel.
Segundo o presidente da Abraceel, a entrada de Itaipu no mercado livre exigiria uma reavaliação dos custos. “Para ser competitiva, a usina precisaria reduzir seus custos e focar na eficiência da geração”, afirma.
Já o professor Tomaz Espósito elenca três possíveis cenários para o novo acordo.
Nova tarifa equilibrada: um valor em torno de US$ 15 por megawatt/hora, o que poderia reduzir custos de geração, mas não impactaria diretamente a conta de luz devido a repasses indiretos.
Manutenção do modelo atual: com previsão de nova negociação em 10 anos, quando o Paraguai estiver mais apto a consumir toda a energia a que tem direito.
Aumento de tarifa: considerado improvável por Espósito, devido à pressão de grandes consumidores brasileiros e à proximidade da eleição presidencial.
“A tendência é de equilíbrio nas tarifas nos próximos três anos, com possível aumento no futuro”, diz o pesquisador. “Se a obrigação de cessão for retirada, o preço da energia vai cair, porque terá que competir no mercado.”
Após a assinatura do novo tratado por ambos os governantes, o documento segue para avaliação nos respectivos congressos nacionais.
Soberania em jogo
Para o professor Aníbal Orué Pozzo, da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), a discussão vai além das tarifas. Ele diz que o que está em jogo é a soberania energética do Paraguai.
“Embora o tratado preveja igualdade, os países são muito diferentes. O Brasil é continental, o Paraguai, menor que o Paraná. Precisamos superar essa assimetria”, afirma.
Pozzo critica o valor pago pelo Brasil pela energia excedente. “Enquanto o mercado internacional paga cerca de US$ 108 por megawatt/hora, o Paraguai recebe apenas US$ 41. Isso gera uma diferença de quase US$ 3 bilhões por ano. Hoje, o país recebe só US$ 360 milhões.”
Ele destaca que essa negociação é o ponto mais crítico do tratado e questiona a narrativa brasileira de “liberar” o Paraguai para vender sua energia. “Estamos falando de dois países soberanos. Não se trata de conceder permissão.”
Geopolítica e pressão externa
Questões políticas e diplomáticas também dificultam as negociações entre os dois países. Um caso de espionagem ilegal envolvendo a Agência Brasileira de Espionagem (Abin), durante o governo Bolsonaro, e o atual diretor nomeado por Lula, Luiz Fernando Côrrea, tensionou o clima com o Paraguai.
O presidente paraguaio, Santiago Peña, congelou as tratativas, estendendo assim o prazo para assinatura do anexo.
Pozzo avalia que os presidentes estão distantes e a relação bilateral vive seu pior momento. “A única coisa que falta é o momento político para assinar o acordo. Isso precisa acontecer quando não for ruim nem para Lula, nem para Peña.”
Para adicionar mais uma camada de discórdia, os Estados Unidos demonstraram interesse na energia paraguaia para uso em centros de processamento de dados e Inteligência Artificial (IA). No dia 21 de maio, o secretário de Estado Marco Rubio chegou a declarar apoio a investimentos norte-americanos com acesso direto à energia de Itaipu.
“Agora o Paraguai usa esse apoio como carta na manga para negociar melhores condições. Mas energia não é uma commodity qualquer, não pode ser armazenada e exige regulação. O país precisa ponderar”, alerta Espósito.
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