Mães reclamam de falta de leite com fórmula especial para crianças em Boa Vista: ‘não sei o que fazer’


Há casos em que crianças estão há 7 sete meses sem receber o leite do Centro de Recuperação Nutricional Infantil (Cernutri). Prefeitura diz que o processo de aquisição de materiais para crianças foi licitado e aguarda homologação. Raweila dos Reis, Uberlande Prazeres e Geovana Góes são mães que precisam de leites com fórmulas especiais para os filhos
Arquivo Pessoal
“Estamos com a situação difícil sem a fórmula dos nossos filhos. Na lata só tem três dedos do leite e eu não sei mais o que faço”
A declaração é da cabeleireira Raweila dos Reis, de 36 anos. Ela é mãe da pequena Luna, de 1 ano e 6 meses, que vive com uma síndrome que afeta o desenvolvimento e a deixa sensível ao leito comum. O Centro de Recuperação Nutricional Infantil (Cernutri) deveria fornecer o leite especial, mas há cerca de 7 meses mais de 100 crianças, incluindo Luna, não recebem o alimento essencial.
Raweila e outras mães montaram um grupo para cobrar a Prefeitura de Boa Vista, responsável pelo Cernutri, para que os leites com fórmulas especiais sejam disponibilizados. O g1 ouviu mães que relataram não receber mais o alimento dos filhos desde novembro de 2023. Uma delas, mãe de um menino de 3 anos, nunca teve acesso, mesmo a criança com laudo que indica o uso.
Para se ter uma noção, uma lata de leite em fórmulas especiais chega a custar R$ 377, dinheiro que essas mães não têm.
No caso de Luna, o leite necessário é o Alfamino, que pode custar R$ 250 a lata. Ela precisa de 13 latas por mês, o que daria um valor de R$ 3.250, considerado alto para mãe, que largou o emprego para se dedicar à filha. A bebê é portadora da Síndrome de Edwards, condição rara que causa alterações físicas e no desenvolvimento.
Entre os problemas da Síndrome, Luna desenvolveu intolerância a certos alimentos, entre eles a lactose. Agora a pequena, que vive com uma sonda, precisa da fórmula à Base de Aminoácidos, que era fornecida pelo Cernutri para se alimentar.
Junto com outras 100 mães, Raweila cobra ao menos uma previsão sobre quando o serviço voltará a ser ofertado pela prefeitura.
“No município, nós não temos disponibilidade do tratamento necessário. Minha filha precisa de um tratamento mais cuidadoso. Hoje, apesar de minha filha estar bem, se ela não receber o alimento necessário, ela vai adoecer novamente. Ela não come pela boca, mas pega coisas, brinca, é ativa e reage como qualquer criança. Mas agora, o leite dela está quase acabando, não sei mais o que eu faço”, disse a mãe.
Por meio de nota, a Secretaria Municipal de Saúde, pasta responsável pelo Cernutri, informou que o processo de aquisição de materiais para crianças APLV foi licitado na última sexta-feira (5) e agora aguarda homologação.
Centro de Recuperação Nutricional Infantil (Cernutri) fica localizado no bairro São Francisco, zona Norte de Boa Vista
Caíque Rodrigues/g1 RR
‘Sinto o abandono e a falta de assistência’
Luna é um bebê que já nasceu com muita luta. Desde os primeiros momentos, as idas ao hospital são constantes por conta da condição rara. Com a síndrome, ela adquiriu uma anomalia congênita no coração. Hoje ela toma leite por uma sonda gástrica devido à sua condição cardíaca. Ela desaprendeu a deglutir e precisa de cuidados específicos.
“Ela precisa de uma gastroenterologista, mas não temos disponível no município. Preciso levá-la ao cardiologista, mas a lista de espera é longa. Essa é a situação da minha filha, e se ela não tiver o alimento que precisa, ficará doente novamente. Ela é uma criança ativa, mas depende de cuidados constantes”.
Pequena Luna é filha de Raweila dos Reis e precisa de leites com formulas especiais para se alimentar
Arquivo Pessoal/Raweila dos Reis
Desde novembro de 2023, ela parou de receber o leite pelo Cernutri na quantidade certa. Em dezembro, depois de muito insistir, recebeu 7 latas – número menor do que as 13 que Luna precisa –. Como forma de emergência, a mãe começou a tentar outros alimentos. O resultado foi uma infecção intestinal e alergia em que Luna ficou 19 dias internada.
“Como mãe, sinto o abandono e a falta de assistência. Não posso comprar o alimento e quando coloco a cabeça no travesseiro, choro, pois tenho outros filhos e fazemos de tudo para lutar pela Luna com tanto amor. Temos tentado substituições, mas elas fazem mal para ela. Estamos sobrevivendo com doações e ajuda de amigos”, disse emocionada a mãe.
Lata de leite que Luna precisa para se alimentar já está acabando e mãe pede para que Prefeitura volte a distribuir as fórmulas
Arquivo Pessoal/Raweila dos Reis
‘A gente fica de mãos atadas’
A luta de Luna é parecida com a da pequena Maya, de 2 anos e 3 meses. A mãe dela, a professora Uberlande Prazeres, de 41 anos, é uma das que insiste para conseguir o leite com fórmula especial.
Uberlande conta que a luta pela saúde de Maya começou desde o nascimento, quando foi diagnosticada com hérnia diafragmática congênita (uma condição em que partes do abdômen, como intestinos ou estômago, se movem para dentro do peito através de uma abertura no diafragma) apenas 24 horas após o parto.
Pequena Maya precisa do leite com fórmula especial para se desenvolver
Arquivo Pessoal/Uberlande Prazeres
Desde então, mãe e filha passaram mais tempo no hospital do que em casa. Em Brasília, descobriram que a condição deixou Maya alérgica à proteína do leite de vaca e à soja.
“Minha filha também já foi hospitalizada várias vezes devido à falta de fórmulas apropriadas. Em setembro, ela teve falência renal por conta de alimento que foi dado erroneamente. Desde então, luta para conseguir as fórmulas corretas. Em março deste ano, ela teve seis paradas cardíacas”.
A pequena só pode tomar leite com a fórmula que não possui essas duas proteínas, o NeoAdvance e, por isso, está sem receber o alimento do Cernutri desde novembro de 2023 – há sete meses. Uberlande conta, que por falta de alimento, Maya chegou a ser hospitalizada.
“Ela se alimenta por sonda e tem disfagia severa. Além disso, começou a investigação de autismo e Transtorno do Déficit de Atenção (TDAH), constatando uma lesão cerebral devido a seis paradas cardíacas em março do ano passado”.
“A fórmula custa R$ 280 a lata, e ela consome 12 latas por mês, totalizando R$ 3.360. Estou desesperada, pois só tenho uma lata e meia e não há previsão de normalização. A gente fica de mãos atadas”, desabafa a mãe.
Ela, que é mãe de outros 4 filhos, conta que está “superendividada” por conta do alimento de Maya. Sem alternativa, pediu ajuda para a Defensoria Pública de Roraima (DPE-RR), que entrou com uma ação para garantir o leite da pequena, mas até o momento não conseguiu sequer um retorno do órgão.
“Estou tentando contato com a Defensoria porque eles nunca mais me deram nenhuma posição. A última posição foi dada ainda no dia 3 de maio e até hoje nunca. Eu tento agora pelo WhatsApp, me passaram um número agora para eu ligar, para agendar, para procurar saber como é que está a situação mas ninguém me responde”.
Por meio de nota, a Defensoria Pública de Roraima informou que pediu para Uberlande apresentar documentos essenciais “como orçamentos atualizados e dados bancários, para fundamentar um possível pedido liminar contra a Prefeitura de Boa Vista”.
Destacou que a mãe “não retornou com os documentos solicitados no ano passado e só voltou em 29 de fevereiro deste ano, informando que a filha ainda precisava da fórmula e apresentando laudos e relatórios médicos atualizados, além de novos orçamentos”.
Diante disso, a Defensoria, ao contar com todos documentos necessários, ajuizou uma Ação de Prestação de Fazer com Pedido de Tutela de Urgência contra o município de Boa Vista. A Justiça determinou o bloqueio de R$ 6.719,76 nas contas do município para a compra de 24 latas da fórmula, suficientes para dois meses. Finalizou destacando que o processo aguarda a sentença, “após a Defensoria apresentar a réplica e a prestação de contas dos valores recebidos”.
O g1 procurou a Prefeitura de Boa Vista e questionou se há o interesse em se posicionar sobre a ação movida por Uberlande e o valor bloqueado. A reportagem aguarda resposta.
‘Meu filho depende disso para se manter instável’
Pequeno Isaac tem 3 anos e tem sequelas de uma paralisia cerebral
Arquivo Pessoal/Geovana Góes
Ao contrário das outras mães, Geovana Góes, de 18 anos, nunca chegou a receber o leite especial da Prefeitura de Boa Vista e, por isso, vive uma “luta diária para lutar pelos direitos” do segundo filho dela, o pequeno Isaac, de 3 anos. Ele nasceu com paralisia cerebral e uma síndrome de epilepsia grave, condições que requerem cuidados especiais e, sobretudo, um leite específico.
Isaac precisa do leite Ketocal 4:1. Geovana conta que a fórmula foi receitada por um médico quando o menino estava internado. Ela arrecadou o dinheiro para comprar o leite com campanhas e doações. De acordo com a mãe, quando ele tomava o leite havia uma “melhora significativa” no desenvolvimento do menino.
“Desde que ele começou a usar essa fórmula, houve uma melhora de cerca de 80% na saúde dele”, relata Giovana.
Contudo, cada lata do leite custa R$ 377, um valor que a jovem mãe não pode arcar sozinha. O consumo de Isaac é de 10 latas por mês, um valor que chega a R$ 3.770 mensais, tornando a situação insustentável financeiramente sem apoio.
Com isso em vista, há 1 ano e 6 meses Geovana luta na Justiça para que a Prefeitura forneça esse leite ao menino. Por meio de nota, a Prefeitura de Boa Vista informou que não possui protocolo clínico para o fornecimento do Ketocal, apenas para a dispensação de fórmulas infantis especiais para pacientes com Alergia à Proteína do Leite de Vaca onde estão listadas 5 tipos de fórmulas diferentes e nenhuma se trata do Ketocal.
Esclarece ainda que, em âmbito nacional, não há nada pactuado quanto à obrigação de dispensação de fórmulas de nutrição enteral, “portanto, o atendimento com Ketocal só pode acontecer legalmente por decisão judicial”. Finalizou afirmando que ainda não foi notificada do processo movido por Geovana.
Para conseguir comprar 10 latas do leite, Giovana organizou uma rifa. Porém, o estoque está acabando, e a preocupação com o retorno ao hospital cresce a cada dia.
“Conseguimos comprar 10 latas através de uma rifa, mas elas estão acabando e logo precisaremos retornar ao hospital, pois meu filho não pode ficar sem esse leite. Ele passou seis meses internado no Hospital da Criança devido à falta dessa fórmula. Meu filho depende disso para se manter estável”, explica.
Ela também participa do movimento de mães para que o Cernutri volte a oferecer os leites especiais. A solidariedade e a troca de experiências têm sido fundamentais nesse processo. “Conheço outras mães que estão na mesma situação. Juntas, buscamos melhorias e lutamos pelos direitos de nossos filhos”, diz.
Giovana espera que, com a visibilidade do caso, as autoridades e a sociedade possam sensibilizar-se e ajudar a garantir o acesso ao leite e aos outros suportes necessários para Isaac.
“Meu pedido é para que ele receba o leite e todos os suportes de que precisa. Não é só por ele, mas por todas as crianças que dependem desses recursos para ter uma vida digna”, conclui.
As mães chegaram a se reunir na Câmara Municipal de Boa Vista no último dia 3 de julho, mas não conseguiram respostas imediatas dos vereadores. O g1 procurou a Câmara para saber se as mães foram atendidas, e até agora não obteve resposta.
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