‘Foi um recomeço’, ‘não penso em voltar’, ‘a gente faz nosso lar’: os venezuelanos que cruzam país em busca de nova vida no Brasil


Quase 10 anos desde o início da migração, Brasil se tornou o terceiro país com a maior população de venezuelanos na América Latina. g1 ouviu imigrantes que trocaram Boa Vista (RR) por Curitiba (PR) e Recife (PE). ‘Foi um recomeço’, ‘não penso em voltar’, ‘a gente faz nosso lar’: o que dizem venezuelanos que chegaram ao Brasil há quase 10 anos
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Eles chegaram ao Brasil pela fronteira de Roraima, o estado menos populoso, na região menos populosa do país, e encontraram um cenário dividido: de acolhimento à xenofobia, de oportunidades de trabalho a desemprego e violações trabalhistas.
Decidiram, então, tentar a sorte em outras partes do Brasil, que é o terceiro da região com a maior população venezuelana na América Latina.
“Eu procurei na internet e vi que Curitiba era uma das cidades com a melhor qualidade de vida do Brasil”, relembra Samuel Caycedo, um engenheiro mecânico de 41 anos.
“Eu vim porque aqui vi mais oportunidades para o meu filho”, disse Carol Formaniak, de 48 anos, uma advogada venezuelana que trabalhou como caixa de supermercado em Boa Vista, e desde 2019 vive em Curitiba.
Na Venezuela, Caycedo vivia em Puerto Ordaz, conhecida como a “cidade dos engenheiros”. Carol era de um município vizinho, Ciudad Bolívar.
Os dois – que não se conhecem – cruzaram a fronteira do Brasil em 2015, tentando escapar da pobreza e da escassez extrema de mantimentos na Venezuela. Depois, migraram outra vez, do Norte para o Sul do país
“Eu tinha um emprego, mas preferi ir embora da Venezuela porque não se fazia nada com o salário de engenheiro. Sempre faltava dinheiro no final do mês”, contou ele.
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Em 2019, junto com a esposa e o cunhado, também venezuelanos, Caycedo abriu uma hamburgueria de rua no estacionamento de um ginásio em Boa Vista, mas ele conta que viu o empreendimento minguar à medida que crescia o número de imigrantes chegando à cidade.
“O faturamento da hamburgueria foi caindo, caindo, e foi ficando cada vez mais difícil pagar o aluguel”, contou. “Eram muitos venezuelanos chegando, as ruas ficando cheias, e os brasileiros não queriam mais comprar da gente”.
Meses antes, ele havia sido demitido de uma oficina em Boa Vista, onde trabalhou por dois anos sem qualquer contrato formal. Foi onde, em 2016, ele falou ao g1 pela primeira vez após ter migrado para o Brasil.
“Depois que fui demitido consegui acionar um advogado, que entrou com uma ação trabalhista e, alguns meses depois, eu fui indenizado”, disse. “Recebi cerca de R$ 4 mil e acabei usando parte para comprar as passagens para Curitiba”.
Samuel Caycedo, engenheiro mecânico venezuelano, que chegou ao Brasil em 2015; depois de viver em Roraima, se mudou para Curitiba
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“Não, você é venezuelano, você não. Era o que eu ouvia”, disse o engenheiro industrial Reinier Salazar, de 38 anos, ao relembrar o clima de tensão em Boa Vista à medida que mais imigrantes cruzavam a fronteira.
Desde 2015, a chegada em massa de venezuelanos em Roraima provocou conflitos com a população local.
Em 2018, um protesto de moradores contrários à imigração tomou conta das ruas da cidade fronteiriça de Pacaraima após o assalto a um comerciante. Dezenas de acampamentos foram destruídos e 1,2 mil venezuelanos que estavam na cidade cruzaram a fronteira de volta à Venezuela.
Nesta época, Salazar ainda vivia em Roraima, e trabalhava como garçom. “Eu morava numa casa alugada com outros venezuelanos e o dono pediu o imóvel de volta. Ele disse que iria receber parentes, e tivermos que sair. Foi difícil arranjar outro lugar porque não queriam alugar para venezuelanos”.
“A gente entende que eram muitos imigrantes chegando, e grupos de pessoas muito pobres, outros fazendo coisas erradas”, disse Salazar, repetindo uma frase muito dita entre os imigrantes: “mas por um pagam todos”.
Reinier Salazar, engenheiro industrial que desde 2015 vive no Brasil
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Em 2020, ele também fez o mesmo caminho que Samuel e Carol: se mudou para o Paraná. O clima, mais frio, foi um dos principais atrativos para a mudança para a região Sul do Brasil, ele disse, assim como a perspectiva de obter um salário melhor. Atualmente, ele é sushiman em um restaurante em Curitiba.
“Continuei a trabalhar com culinária, que é o que realmente gosto e, com o tempo, trouxe meus pais para também viverem aqui”, contou Salazar que na Venezuela viveu na cidade de Puerto Ordaz, e também em zonas de garimpo perto da fronteira com o Brasil, onde, desde criança, trabalhou com o pai.
“Não penso em voltar para a Venezuela. Hoje meus planos são de continuar no Brasil, que quero conhecer mais, e também comprar um terreno para construir uma casa para os meus pais, do jeito que eles sonham”.
De caixa a gerente
Quase 10 anos depois de ter migrado para o Brasil, a advogada Carol Formaniak ainda tem na memória muitas lembranças da terra natal — mas também diz que não pensa em regressar.
“Saí da Venezuela pela situação em que o país estava. Faltava segurança, saúde e tinha desabastecimento, filas para comprar comida. Era muito difícil”, relembra. “Minha mãe também veio para Curitiba e quase todos os dias ela fala em voltar para a Venezuela, diz que se o governo trocar, ela volta, mas acho muito difícil. A gente guarda esperança, mas não têm planos de voltar”.
Em Boa Vista, onde viveu de 2014 a 2019, Carol Formaniak acabou chamando atenção: mesmo formada e com experiência na área, ela precisou trabalhar como caixa de um supermercado.
A advogada Carol Formaniak, migrou para o Brasil em 2015, trabalhou como caixa de supermercado em Boa Vista; depois de ir a gerente, ela se mudou para Curitiba, onde vive atualmente
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“No meu pais, eu atuava como advogada e trabalhava com direitos humanos”, disse. “No Brasil, eu tive que começar do zero”.
Mas a experiência no supermercado foi rápida – e de sucesso. Em alguns meses, ela foi promovida a gerente de vendas da mesma empresa, onde trabalhou até se mudar para Curitiba.
“Só tenho boas lembranças dos meus colegas de trabalho e agradeço aos meus chefes que confiaram em mim, mas senti a necessidade de continuar o meu caminho”, contou. “Não sofri xenofobia em Boa Vista, mas temia pelo meu filho, e queria dar oportunidades a ele”.
Atualmente, a advogada é atendente de suporte em uma empresa de transportes em Curitiba, função que atingiu após também ter sido ser promovida duas vezes — quando concedeu entrevista, ela aguardava por uma terceira promoção.
“Vir para o Brasil foi um recomeço, mas sinto que valeu a pena. Hoje meu filho, que chegou praticamente criança, está com 21 anos, faz faculdade, trabalha. Brinco que ele é mais brasileiro do que venezuelano”.
Pais venezuelanos, filhos brasileiros
Em oito anos, uma geração de 14 mil bebês “brasilanos”, brasileiros filhos de pais venezuelanos, nasceram em Roraima, segundo dados da Secretaria Estadual de Saúde.
Pela legislação do Brasil, que adota um sistema misto de nacionalidade, são brasileiros todos aqueles que nascem no território do país, que é o caso dos filhos dos venezuelanos, bem como aqueles nascidos fora, mas que tenham um ou ambos os pais nativos. Na Venezuela, o sistema é igual.
Às 4h de 18 de outubro de 2018, em Boa Vista, nasceu o “brasilano” Samtyago Diaz. Na época, com ele nos braços, a mãe, Dagly Monroy, então com 24 anos, contou ao g1 o que mais desejava para o futuro dele: “Meu filho vai viver e estudar no Brasil. Eu espero que aqui ele seja um profissional, algo que não poderia ser na Venezuela”.
Seis anos depois, ela continua com os planos, mas morando em outro lugar: se mudou para Recife com o filho e o marido, em busca de melhores condições de vida. Tem dado certo.
“Agora eu estou estudando bacharelado em fisioterapia, e estou trabalhando em uma clínica”, contou Dagly.
Há dois anos, o engenheiro Samuel Caycedo e a esposa também se tornaram pais de outro “brasilano”: Daniel, que nasceu em Curitiba. A família, no entanto, tem outros planos.
Desde o fim do ano passado, os três estão nos preparativos para uma longa viagem: vão regressar a Roraima para cruzar de volta a fronteira da Venezuela.
“Há 11 meses, a empresa que eu trabalhava, uma hidrelétrica em Puerto Ordaz, entrou em contato comigo e com vários colegas e nos propuseram voltar a trabalhar com condições muito melhores do que no passado”, contou Caycedo. “Pensei bastante, e decidimos voltar”.
Os venezuelanos que cruzaram o país em busca de nova vida no Brasil
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Caycedo não deve votar nas eleições presidenciais da Venezuela, marcadas para o próximo dia 28 de julho, em um pleito que já é cercado de polêmica.
“Sinto muita saudade da Venezuela, do que a gente viveu lá, dos amigos, da experiencia, mas se não tivesse tido essa proposta, não voltaria”, resumiu. “Eu acho que o país ficou muito destruído e vai precisar de muita gente para se recuperar”.
Nove anos depois de ter migrado sozinho para o Brasil, Caycedo está disposto a cruzar a fronteira outra vez – e agora acompanhado.
“A gente faz nosso lar, e o meu lar é minha família”, disse ele. “Nossa experiencia no Brasil foi muito enriquecedora, foi maravilhosa, e a gente vai ser eternamente grato”.
Êxodo venezuelano em números
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