Pescador preso por crime ambiental relata perseguição no baixo Rio Branco


Região conhecida como Serrinha é alvo de disputa judicial entre ribeirinhos. Josadarque Dias, de 45 anos, chegou a ser preso por crime ambiental. Josadarque Dias, de 45 anos, chegou a ser preso por crime ambiental ao ser flagrado no local
Arquivo Pessoal/Josadarque Dias e Reprodução
“É uma luta desigual. Eles têm tudo: polícia, poder e dinheiro. E a gente só tem a nossa história, nossa terra e nossa verdade”, lamenta o pescador Josadarque Dias, de 45 anos. Ele é um dos três pescadores presos por ocuparem a área alvo de disputa judicial conhecida como “Serrinha”, às margens do Rio Água Boa do Univini, na região do Baixo Rio Branco, no Sul de Roraima. Dias chegou a ser preso por crime ambiental no último dia 11 deste mês, pagou fiança e responde em liberdade.
Josadarque, em entrevista ao g1, relatou disputas territoriais, intimidações e até ameaças veladas por parte de empresários da pesca esportiva e turística na região, que pressionam os ribeirinhos a deixarem o local. Além disso, afirma que policiais militares ambientais e fiscais da Fundação Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Femarh) agem na região para favorecer grandes empresários que atuam no ramo de pesca esportiva.
“A verdade é que estão nos tirando para beneficiar empresários. Quem tem dinheiro, como os donos de grandes hotéis, mandam na região”, acusa o pescador.
Região da Sítio Serrinha, alvo de disputa judicial no Baixo Rio Branco, Sul de Roraima
Reprodução
🏞️ A região do “Serrinha” – chamada pela Femarh de “Sítio Serrinha” e de “Comunidade Serrinha” pelo Ministério Público Federal (MPF) em uma ação judicial, é alvo de disputa sobre o uso recursos naturais na região do Baixo Rio Branco, em Roraima. Moradores, segundo o MPF, afirmam sofrer pressões para deixar o território.
🔎 Femarh é o órgão do governo do estado responsável por coordenar ações de controle, preservação, conservação e a recuperação ambiental, com foco no desenvolvimento socioeconômico sustentável e a melhoria da qualidade de vida da população.
👉 Em agosto deste ano, após pedido do MPF, a 1ª Vara Federal Cível da Justiça Federal suspendeu a atuação da Femarh na região sob a alegação de que a área indicava a situação de população tradicional. Agora, com uma nova decisão de segunda instância, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), a Fundação foi autorizada a voltar a atuar na região.
Três dias depois da decisão, no dia 11 de novembro, o pescador Josadarque, um sobrinho dele de 22 anos, e um amigo, de 60, também pescadores, foram presos no sítio Serrinha por policiais militares da Companhia Independente de Policiamento Ambiental (Cipa) em ação conjunta a Femarh.
No dia, os três foram enquadrados nos crimes de ocupação irregular, uso ilegal de motosserra e construção não autorizada em área de preservação ambiental por estarem acampados às margens do Rio Água Boa do Univini.
Ação da Cipa e Femarh na região do Baixo Rio Branco alvo de disputa judicial em Roraima
Reprodução
O acampamento em que eles estavam, construído há três meses, foi destruído pelos policiais. De acordo com o pescador, todos os pertences dele foram destruídos e animais, como cachorros e galinhas, foram deixados no local. Agora, luta para reaver tudo. Josardaque afirmou ainda que os agentes tomaram os celulares deles e apagaram as filmagens da ação.
“Eles destruíram nossas coisas e ainda tomaram nossos celulares e apagaram todas as fotos e vídeos que a gente tinha gravado como prova. Nos trataram como invasores, nos tiraram de lá à força e levaram a gente preso. Não nos deram nem a chance de tirar nossas coisas de lá”, disse Josadarque ao g1.
No entendimento do MPF, assim como nos relatos do pescador, a repressão é para favorecer empresários que atuam na pesca esportiva no Baixo Rio Branco e principalmente dois empreendimentos: o flutuante Bellos Monte (antigo Porto Tur), do empresário Walace Porto, e o hotel de luxo Agua Boa Amazon Logde – que atua na região com duas atividades: hospedagem turística e atividades esportivas e hospedagem.
No serviço de atividade esportiva e hospedagem, o Agua Boa Amazon Logde é registrado no nome de Rodrigo Mesquita, filho do pecuarista e também empresário Disney Mesquita. O pescador Josardaque afirma que fiscais da Femarh e a PM agem para atender a interesses de Walace e de Disney.
Procurado pela reportagem, Disney Mesquita negou todas acusações feitas por Josardaque e destacou que a empresa do filho opera na região com todas as licenças legais necessárias. Ele afirmou ainda que pescadores ribeirinhos da região estão sendo cooptados por um empresário e pescador esportista do Rio Grande do Sul conhecido como Fernando Paraguassú, que tem atuado na região e tem interesse nas terras que ficam nas margens do rio Água Boa do Univini.
O empresário Walace Porto também nega todas as acusações. “Trabalho na região há 15 anos, na entrada do Rio Água Boa, no Rio Branco, e nunca enfrentei problemas ou conflitos. Sou licenciado e opero em conformidade com as normas ambientais. Nosso empreendimento, Bellos Monte, possui todas as autorizações necessárias”, afirmou.
Paraguassú também foi procurado pelo g1 e disse que falaria com o advogado para, assim, comentar o assunto. Até a última atualização da reportagem ele não havia enviado posicionamento.
Em nota, a Femarh informou que todas as ações relativas às recentes denúncias de desmatamento e invasão ao que chamou de Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Xeruiní seguem os trâmites legais com o objetivo de proteger o meio ambiente e preservar as áreas de proteção e reserva.
Disse ainda que a primeira denúncia de desmatamento e invasão na área levou à emissão do auto de infração contra Fernando Paraguassú. O documento solicitava que o autuado apresentasse, em até cinco dias, documentos de autorização para desmatamento e comprovação de propriedade rural. Disse ainda que até o momento, o autuado não apresentou a documentação.
A Femarh também relata que, com a falta de resposta de Paraguassú, foi até a Serrinha e encontrou Josadarque, que assumiu a responsabilidade pelas construções, alegando desconhecimento do desmatamento. Disse que a estrutura do local não se caracterizavam como residências ribeirinhas, mas “indicavam a instalação de um possível empreendimento de turismo ou pesca esportiva”.
A Femarh também disse que foi identificado o financiamento das atividades por Fernando Lexau Paraguassú, com equipamentos no local marcados com o nome “Paraguassú” e motores de pesca.
‘Essa terra é nossa por direito’
Caso Serrinha: Femarh e pescadores estão em disputa na localidade
Após a prisão, Josadarque foi levado à delegacia da Polícia Civil de Caracaraí e foi liberado após o pagamento de uma fiança de R$ 3 mil. No dia da ação, Cipa e Femarh informaram que se tratava de trabalho “prevenir crimes ambientais nos municípios ao longo do rio Branco, como a pesca ilegal e o tráfico de animais silvestres, além de monitorar áreas de proteção no Baixo Rio Branco”.
De acordo com a PM, ao abordá-los, Josardaque não comprovou a posse do sítio serrinha. De acordo com o pescador, ele é “nascido e criado” no Baixo Rio Branco, em Caracaraí e cuida há 6 anos da área em questão.
Ele conta que o amigo dele, o também pescador Sidney Pereira, de 43 anos, conhecido como “Thor”, é o verdadeiro dono do sítio. À pedido do amigo, Josardaque diz que passou a tomar conta da área, cuidando das galinhas e das plantações.
Sidney Pereira, desde 2022, enfrenta uma disputa judicial com um empresário e médico já falecido pela região onde fica o sítio Serrinha. O médico e a família alegaram ser os verdadeiros donos do local e entraram com um pedido de reintegração de posse, porém, uma decisão da Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Roraima afirma que as provas apresentadas não foram suficientes e extinguiu ação. (Entenda mais abaixo).
Diante desse impasse, a propriedade ficou abandonada durante dois anos. Neste ano, Josadarque começou a cuidar do local. Lá, ele montou um acampamento, tirou o mato que crescia e começou a criar galinhas e levou cachorros.
“Nós temos todos os documentos da terra: o georreferenciamento, os registros e tudo pago. Ficamos quase dois anos longe da nossa terra, mas voltamos depois da decisão judicial. Quando chegamos, estava tudo tomado pelo mato, então começamos a limpar e reconstruir”, afirmou o pescador.
“Entraram na propriedade sem pedir permissão, desligaram nosso motor de luz e acabaram com as câmeras de segurança que tínhamos instalado por segurança, já que sofremos muitas ameaças”.
À época da prisão, a PM informou que foram encontrados uma motosserra e objetos para uso diário. A ocupação foi considerada pelos agentes uma violação da Lei de Crimes Ambientais, que “pune infrações como impedir a regeneração de florestas e operar com motosserras sem licença”.
De acordo com Josadarque, a abordagem violenta que não deram a chance de tirar os pertences do local. Ele afirma ainda que os agentes chegaram a quebrar uma canoa que estava ancorada nas margens do rio.
“Levaram a gente preso sem se identificar direito e nem nos deram chance de tirar nossas coisas da casa. Ficamos com tudo no relento: cama, galinhas, cachorro, tudo jogado lá, e nem lona nos deram para cobrir. Eles ainda levaram nossos motosserras, dizendo que era para desmatamento, mas a gente só usava pra fazer barraco”, disse ao g1.
“A verdade é que estão nos tirando para beneficiar empresários. Quem tem dinheiro, como os donos de grandes hotéis, manda na região. Disney [Mesquita] e Wallace [Porto]… esses empresários têm apoio da polícia e conseguem tudo do jeito deles. Os empresários querem tomar as terras na marra, de forma irregular. Os estrangeiros turistas não querem ver ninguém nas áreas onde eles pescam e por isso expulsam a gente”, acrescentou o pescador.
Josadarque registrou um Boletim de Ocorrência (BO) nessa segunda-feira (18) contra a Femarh relatando que não conseguiu reaver seus pertences que ficaram na Serrinha. A Polícia Civil informou que esta apurando e que uma testemunha foi indicada pelo comunicante para prestar esclarecimentos. Ressalta que, até o momento, nenhum dos objetos mencionados foi apresentado à Delegacia de Caracaraí como apreendido pelas equipes envolvidas na ação.
Agora, ele luta para conseguir ser recompensado pela perda.
“Enquanto isso, a gente, que é pequeno, não tem voz. Somos tratados como errados, como se não tivéssemos direito de melhorar nossa vida. Não podemos ter uma geladeira ou internet porque dizem que ribeirinho tem que viver de forma atrasada, comendo em cuia e vestindo roupa velha. Parece que não aceitam que a gente tenha dignidade”.
Ainda na nota, a Femarh informou que o ponto central da análise são as “inconsistências nas declarações do senhor Josadarque Dias”. De acordo com a fundação, “em um momento, ele afirma ao Ministério Público Federal ser residente da ‘Comunidade Serrinha’, mas em outro declara que reside em Caracaraí, utilizando o local apenas para lazer”.
A Femarh afirma que vídeos divulgados mostram a esposa do senhor Josadarque declarando que o terreno pertence ao casal, enquanto ele atribui a posse a outro proprietário, o senhor Sidney Pereira de Azevedo. Para a fundação, “essas declarações contraditórias levantam dúvidas sobre a ocupação e a alegada posse do imóvel”.
A Femarh disse que, para a Polícia Civil, Josadarque também mencionou “apoio financeiro de terceiros” para sua permanência e que ganhou uma casa em Caracaraí. Josadarque, por sua vez, diz que apoios que recebem nada tem a ver com a área do Serrinha.
“Até o momento, o senhor Josadarque não apresentou à Femarh documentos que comprovem sua posse ou autorização para desmatamento dentro da RDS. Evidências fotográficas e de satélites indicam que o desmatamento é recente, iniciado nos últimos dois anos, o que não corresponde à sua alegação de longa ocupação”.
A Femarh afirma que as informações sobre a suposta apreensão de um celular do senhor Josadarque são infundadas e não têm veracidade.
A reportagem questionou Josadarque sobre as alegações de Disney de cooptação por parte de Fernando Paraguassú. O pescador disse que recebe ajudas como doações de cestas básicas e mão de obra. Disse que Paraguassú é um amigo e que as ajudas são por “amizade e nada mais”.
Disse ainda que foi questionado sobre a sua relação com Fernando Paraguassú pelo delegado, e no depoimento o citou como um amigo que o ajudou a construir uma casa e o apoia financeiramente com cestas básicas.
“Mencionei isso no depoimento. No entanto, em nenhum momento ele me deu casa aqui em Caracaraí. Se quiser verificar, a casa onde moro aqui é antiga. Na verdade, nem é minha, é da minha mulher, e já faz muitos anos que estamos lá”, disse Josadarque.
O g1 procurou Fernando Paraguassú e aguarda resposta.
Sobre as inconsistências apontadas pela Femarh, Josadarque disse que não são verdadeiras. O pescador afirma que a esposa dele tem uma “casa velha” em Caracaraí onde cria as filhas.
“Em Caracaraí, temos uma casa pequena onde minhas filhas ficam, pois estudam na cidade. Eu moro praticamente no sítio. Venho para cá apenas para ver minhas filhas e resolver problemas. No dia 5, voltei para buscar as meninas, que iam passar férias comigo. Minha vida é no sítio, mas precisei retornar para a cidade porque, há dois anos, me expulsaram de lá. Continuo morando no sítio”, disse.
Josadarque reafirma o posicionamento contra os empresários do turismo e da pesca esportiva na região.
“Todo mundo sabe que o Disney é quem controla essa situação, mas ninguém tem coragem de falar. Eu tenho coragem de dizer abertamente: é ele quem está por trás disso e colocando outras pessoas como financiadores”.
Por meio de nota, a Polícia Militar informou que as ações desenvolvidas pela Cipa “são realizadas com estrita observância à legislação vigente e em conformidade com as normativas ambientais aplicáveis”.
“Todas as atuações da Cipa são fundamentadas em autos de infração devidamente elaborados e encaminhados aos órgãos competentes, incluindo a Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente e Patrimônio Histórico do Ministério Público Estadual, assegurando a legalidade e a transparência de suas operações”, destacou.
Terra em disputa
Região do Sítio Serrinha em imagens obetidas pela Femarh, em Roraima
Reprodução
Sidney, ou Thor, alega ser dono da área da Serrinha há 29 anos. A área fica nas proximidades da hotel de luxo de Agua Boa e também onde os clientes do hotel-barco de Wallace costumam praticar a pesca esportiva.
Ele informou que conseguiu a terra com os herdeiros dos antigos proprietários que, por conta dos conflitos, resolveram vender o local, com isso, comprou a área oficialmente.
“Eu não tinha condições de cuidar da terra sozinho, então o Josadarque pediu para plantar e morar lá, e nós fizemos um acordo formal. Precisávamos de alguém ocupando o território porque, anteriormente, já haviam tentado colocar documentos falsos sobre a propriedade. Por isso, era importante ter alguém cuidando para evitar mais problemas”.
Em 2018, logo quando adquiriu a propriedade, Sidney conta que começaram as retaliações. “Já enfrentamos várias dificuldades: destruíram placas que colocamos na área, já explodira tudo. Isso só pode ter sido feito por pessoas ligadas aos empresários da região”, relata.
Em 2022, a empresa do médico Jan Roman Wilt, a Wilt & Araujo LTDA, entrou com um pedido de reintegração de posse. À época, a empresa alegava ser a verdadeira dona do local, que se chamava “Sítio Cabo Frio”, e pediu que Sidney e as três famílias que viviam no local saíssem.
Durante o processo, por três vezes a Justiça negou a posse à empresa do médico. Na última decisão, de julho deste ano, o entendimento foi o de que ações de reintegração de posse servem para “proteger quem está efetivamente ocupando um imóvel e perde essa posse por causa de uma invasão”, o que não seria o caso.
Por meio de nota, a defesa da Wilt & Araujo LTDA afirma ser legítima proprietária da região. Reafirma os direitos de propriedade, “devidamente documentados com título definitivo expedido pelo Iteraima e registro imobiliário”. Reforçou a decisão em primeira instância que concedeu à empresa o direito de reintegração de posse. Classificou Sidney e Josadarque como “invasores” e afirmaram que eles cometeram “diversos crimes ambientais na propriedade durante as duas invasões que fizeram a propriedade”.
Acampamento foi destruido pelos agentes no Baixo Rio Branco, Sul de Roraima
Reprodução
Para Sidney, a Serrinha a área é dele desde 1995. No processo, ele afirmou ter imagens de satélite que comprovam que o local estava abandonado.
“Estava abandonada havia algum tempo […] [os antigos donos] eram uma família tradicional da região. Eles saíram por medo de tudo isso que está acontecendo. Mesmo assim, estamos sofrendo com intimidações. Várias outras pessoas que tinham terrenos lá também foram expulsas”.
“Já houve casos de ameaças de morte, mas é difícil registrar porque, quando tentamos gravar algo, eles tomam nossos celulares”, afirmou Sidney.
Paralelo à isso, a Femarh interveio e entendeu que a região que compreende a Serrinha é área de preservação. Em 2022, cerca de três famílias que viviam na propriedade foram expulsas do local, com casas e barracos destruídos pela Cipa, afirmam Sidney e Josardaque. Vídeos gravados da época mostram a ação dos agentes.
Ainda na nota enviada, a Femarh afirma que é ciente do processo litigioso sobre a terra onde está o Sítio Serrinha.
Desde janeiro de 2024, o MPF investiga o conflito na região por meio de um inquérito civil. “O inquérito civil foi instaurado pelo MPF após reunião realizada com representantes ribeirinhos do Baixo Rio Branco, moradores do Sítio da Serrinha. Eles denunciaram que estariam sendo expulsos do território tradicionalmente ocupado após a instalação de hotéis que oferecem serviços de pesca esportiva na região, numa atuação articulada entre empresários, policiais militares e fiscais da Femarh.”
Segundo apurado pelo MPF, a Femarh aplicou sanções ambientais contra os ribeirinhos e teria removido equipamentos e destruído construções do Sítio Serrinha.
Sobre os entendimentos do MPF, a Femarh reiterou que a área é uma RDS, e não uma comunidade ribeirinha.
“A sensação é de impotência. Eles querem tomar as terras à força, usando o poder econômico e político que têm. Nós, que somos pequenos, ficamos à mercê disso tudo. A situação é muito difícil para as famílias que dependem da pesca e da terra”, desabafou Sidney ao g1.
Empreendimentos de luxo para pesca esportiva
A região do Baixo Rio Branco, mais especificamente no Rio Água Boa do Univini, em Caracaraí, tem sido destino de turistas estrangeiros que praticam pesca esportiva em busca de peixes exóticos, principalmente o tucunaré. Com isso, empreendimentos para atender esses turistas se instalaram na região. Os dois hotéis e empresários citados pelo MPF e também pelos pescadores são destaque neste ramo.
Agua Boa Amazon Lodge, em foto panorâmica com pista de voo na região do Baixo Rio Branco
Reprodução/Site/Agua Boa Amazon Lodge
O hotel de luxo Agua Boa Amazon Lodge é especializada no atendimento para turistas estrangeiros – as informação sobre o hotel no site são todas em inglês. Na descrição, o site cita os peixes “exóticos e ferozes” da região. “Ao contrário da maioria dos outros destinos de pesca da Amazônia, as águas lindamente claras da Água Boa, combinadas com o fundo de areia leve, permitem pescar com uma bela vista”, conta, em livre tradução para o português.
Na galeria de fotos, vários turistas estrangeiros pousando com tucunarés — principal peixe para a pesca esportiva na região. Um dos textos, cita ainda, que um empresário suíço adquiriu a área do hotel de Jan Wilt, em 2007.
O Agua Boa Amazon Lodge está registrado em dois CNPJ. Um deles voltado para hospedagem turística no nome de Lance Ranger avalizado em R$ 70 mil; outro voltado para atividades esportivas e hospedagem no valor de R$ 400 mil no nome de Rodrigo Mesquita — filho de Disney Mesquita.
O g1 procurou Rodrigo Mesquita e aguarda resposta. O pai dele, Disney, disse que nem o filho, tampouco outras pessoas do hotel tem envolvimento com ameaças ou perseguições a ribeirinhos. A reportagem também procurou o hotel pelo e-mail disponibilizado na página, mas ainda não recebeu resposta.
Já a Bellos Monte é um hotel que também promove a pesca esportiva que funciona em um barco — anteriormente se chamava PortoTur. O dono, Wallace Porto, de acordo com o site do empreendimento, atua no estado com “prestação de serviços de locação de veículos utilitários e executivos, máquinas e serviços turísticos diversos”.
Dentre os serviços turísticos ofertados, a empresa destaca-se “pela prestação de serviços no segmento de pesca esportiva na região do Baixo Rio Branco, no estado de Roraima, desde o ano de 2010”.
Fachada do barco hotel Bellos Montes – antes conhecido como PortoTur.
Reprodução/Site/PortoTur
Também há no site da Bellos Monte fotos de pescadores esportistas estrangeiros segurando tucunarés. A empresa está avaliada em R$ 280 mil.
Em entrevista ao g1, Disney Mesquita disse que no rio Água Boa do Univini existe apenas o hotel Agua Boa Amazon Lodge e a PortoTur. Negou qualquer conflito e descreveu o local como “tranquilo”.
“O hotel Água Boa Amazonas, por exemplo, está na região desde 1988, com a primeira licença ambiental emitida em 1995. Não é uma operação recente. Há também disputas de terra que não envolvem diretamente os hotéis. Se quiser, posso fornecer o número do processo relacionado a essas disputas”, disse.
Quanto às acusações de que fiscais e policiais militares atuam em defesa dos empresários, ele afirmou que não há qualquer interferência. “As fiscalizações são rotineiras em áreas de reserva sustentável, realizadas por órgãos como Ibama e ICMBio, para prevenir ilícitos ambientais”.
Ele destaca que Fernando Paraguassú estaria usando pescadores para explorar a pesca esportiva ilegalmente no estado.
“O que acontece é que há um senhor do Rio Grande do Sul, chamado Paraguassú, que usa pescadores para explorar a pesca esportiva ilegalmente no estado. Ele já tentou isso no Água Boa, mas a Justiça reconheceu o erro e reverteu a situação. Agora, ele está tentando novamente”.
Fernando Paraguassú é um empresário de 54 anos natural do Rio Grande do Sul e também pesca de maneira esportiva no Baixo Rio Branco. O g1 entrou em contato com ele, questionou se há o interesse em se posicionar e aguarda resposta.
Wallace, por sua vez, destacou que a empresa Bellos Monte ficou “estarrecida com esta grave acusação”. Pois jamais agiu “com falta de respeito ou, pior ainda, com atos violentos para com quem quer que fosse”.
Ele destacou que atua há anos no turismo de pesca no Baixo Rio Branco e jamais teve quaisquer desentendimentos com moradores, profissionais da pesca, visitantes ou entidades públicas na região.
“Trabalho na região há 15 anos, na entrada do Rio Água Boa, no Rio Branco, e nunca enfrentei problemas ou conflitos. Sou licenciado e opero em conformidade com as normas ambientais. Nosso empreendimento, Belos Montes, possui todas as autorizações necessárias”, disse o empresário.
Wallace também destacou que tem um acordo de cooperação técnica com os órgãos fiscalizadores
” a fim de fornecer apoio de logística de estadia para operações de fiscalização na região”.
“Nos últimos anos, a atividade turística na região cresceu muito. Com isso, surgiram novas empresas e, por vezes, conflitos. Porém, não temos envolvimento em problemas relatados por pescadores ou outros grupos. Pelo contrário, mantemos uma boa relação com a comunidade local e com os pescadores que passam pela região, oferecendo ajuda quando necessário”.

Pesca esportiva X Pesca artesanal
Os conflitos entre os pescadores artesanais e pescadores esportistas não é de hoje. De acordo com o pesquisador Lúcio Galdino, doutor em geografia pela Universidade Federal do Ceará, e professor do curso de geografia da UERR que pesquisa o território ribeirinho e conflitos com a pesca esportiva no Baixo Rio Branco, a pesca esportiva começou a crescer na região há pelo menos 10 anos.
Lúcio Galdino, doutor em geografia pela Universidade Federal do Ceará, e professor do curso de geografia da UERR, que pesquisa os conflitos entre ribeirinhos e turistas da pesca esportiva
Caíque Rodrigues/g1 RR
De acordo com ele, os conflitos evoluíram há cerca de seis anos e, para ele, o motivo é que a Amazônia é uma das maiores reservas de biodiversidade do mundo – diversidade que se estende para as águas do Baixo Rio Branco.
Essa diversidade proporciona paisagens naturais que são ideais para o turismo, incluindo o chamado “turismo selvagem”. A pesca esportiva é um exemplo desse tipo de turismo, no qual visitantes vêm com o objetivo de registrar experiências e pescar espécies consideradas exóticas.
“Em certas áreas do Baixo Rio Branco e de seus afluentes, onde existem espécies de peixes mais raras e valorizadas, os ribeirinhos estão sendo impedidos de pescar, o que compromete seu sustento. Espécies como o tucunaré, por exemplo, são muito procuradas pelos turistas e, ao mesmo tempo, essenciais para a subsistência das comunidades locais”, explica o pesquisador.
De acordo com Lúcio, a pesca esportiva, mesmo liberando o peixe após tirá-lo da água, causa também mortalidade aos animais.
“Além disso, há relatos de que a prática da pesca esportiva causa uma significativa mortandade de peixes. Ao serem capturados e devolvidos à água, muitos peixes ficam feridos, o que pode levar à morte de uma parcela significativa deles. Isso é motivo de preocupação tanto para os ribeirinhos quanto para os pesquisadores”.
O motivo do conflito, de acordo com Lúcio, é o incômodo que a presença dos ribeirinhos parece causar aos turistas e aos promotores da pesca esportiva. Há relatos de intimidações para afastar essas comunidades das áreas de maior interesse econômico. Áreas como Água Boa do Univini e o Rio Anauá têm sido palco de conflitos mais intensos.
“Os impactos da pesca esportiva vão além do meio ambiente. Há também consequências socioeconômicas e socioculturais. A pesca tradicional, que não é uma atividade criminosa, é uma prática de subsistência essencial para os povos ribeirinhos e faz parte de sua cultura. A intimidação e as restrições impostas a essas comunidades comprometem não apenas sua sobrevivência econômica, mas também sua identidade cultural”.
“Outro aspecto relevante é que os benefícios econômicos gerados pela pesca esportiva não estão sendo amplamente distribuídos na região de Roraima. A maior parte das empresas que promovem esse tipo de turismo está sediada no estado do Amazonas, especialmente em Manaus. Assim, as divisas acabam beneficiando mais o Amazonas do que Roraima, já que muitos turistas permanecem nas embarcações, sem utilizar amplamente os serviços locais de hospedagem e alimentação”.
De acordo com o presidente do Sindicato dos Pescadores e Piscicultores do município de Caracaraí, Georgino Ribeiro, a recomendação do sindicato é que os pescadores artesanais não pesquem nas águas do Água Boa do Univini.
“É um problema antigo. Em rios como o Água Boa, por exemplo, a gente entende que são áreas do pessoal do turismo, o sindicato não recomenda que nenhum pescador artesanal pesque por essas áreas. Até por que, não conseguimos pescar por lá. Eles alegam que o local é 100% turístico e, por isso, não permitem nossa entrada”, explica o presidente.
Ele destaca que muitos pescadores que viviam lá foram expulsos. Antes, o local era acessível para todos, mas, com o tempo, passou a ser exclusivo para turismo, de acordo com ele.
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